Green Book
é um filme americano lançado em 2018, dirigido por Peter Farrely. Vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2019, está disponível no Prime Video, da Amazon. Ele conta
a história - baseada em fatos reais - de uma turnê que o músico Don Shirley
(Mahershala Ali) fez pelos EUA, guiado por seu motorista Tony Vallelonga (Viggo Mortensen). O foco principal do filme é mostrar as situações de racismo que imperavam naquela sociedade. Isso já fica claro pelo título.
Toda vez que vejo em um filme ou numa série esta situação de segregação, me espanto e penso "quanta ignorância!". Nunca vivi isso. Sou baiano, sempre vivi numa realidade de mistura de cores e aparências, que é cada vez maior. O preconceito que existe por aqui é velado. Sem contar o estrutural, claro. Este é real e visível.
Enquanto assitia a este filme me lembrei de um vídeo que vi há
algum tempo no canal da Casa do Saber, no Youtube. Nele o neurocientista Pedro Calabez fala um pouco sobre a raiz dos nossos preconceitos: essa tendência que nós temos de ver o mundo em preto ou branco, bom ou mal, certo ou errado. Veja o vídeo abaixo:
"Se eu não sou preto o bastante, não sou branco o bastante... o que eu sou?"
Essa fala do subtítulo é do personagem Don Shirley. E bateu com força em mim! Eu já vivi alguns momentos como esse: de não pertencimento, de não conseguir me enxergar nas categorias que estavam postas. Imagino como seja para as pessoas não binárias ou para as transgêneros. Dói!
Pessoalmente eu acho que não há como escapar dessa dualidade que Dr. Calabez define como o nosso modo automático de pensar, utilizado para economizar energia. É mais que isso: é para dar sentido ao mundo, para que assim possamos tomar decisões rápidas, seguras e que garantam nossa sobrevivência. Não dava para filosofar durante uma caçada. Felizmente, esse tempo passou. Hoje, temos à nossa disposição energia suficiente para suprir o esforço de sair do modo automático e ver que "o mundo não é preto e branco, é muito mais um cinza difícil de entender do que preto e branco". No entanto, se não nos esforçarmos continuamos nesse modo porque para sair dele é preciso fazer a escolha.
Don Shirley fez essa escolha, afinal ele poderia ter ficado no Norte do país tocando e sendo bajulado por brancos ricos, vivendo no seu apartamento chique; mas decidiu ver como é ser negro no sul do país.
A saber, ele é um homem culto, educado que nunca comeu frango frito e nem mija no mato como um animal. Seu contraponto na história, Tony é um homem do povo que faz pequenos trabalhos, é mau educado e faz trambiques para conseguir dinheiro para sustentar sua família. Inclusive trabalhar para um homem de cor, a despeito de seu próprio preconceito. A viagem é uma jornada para os dois e, no final, para ambos o mundo deixa de ser só preto e branco.
As diversas camadas do Racismo
Adotamos em nossas relações um certo pragmatismo. Isso é visto no filme: um negro pode tocar e entreter os brancos com sua música, mas não pode jantar na mesma mesa, ou usar o mesmo banheiro; o negro pode fazer os serviços da casa, mas não pode usar o mesmo copo que os brancos; um branco pode trabalhar para um negro, mas não ser comparado com um. Fazendo as devidas abstrações, podemos notar isso ainda acontecendo em no nosso dia a dia, seja pela sexualização do corpo negro, ou por se surpreender diante de um médico ou juiz negro ou, pior, a não aceitação da legitimidade do discurso sobre os negros pelos negros.
Do ponto de vista social, hoje, a sociedade parece resolvida. Aqui, eu preciso dar enfoque na palavra PARECE. Se você avaliar a letra fria das leis (que em teoria é o que organiza a sociedade) vai parecer que está tudo resolvido. Fizemos escolhas certas, revogamos leis contra escravidão, leis de segregação racial (no caso dos EUA), temos uma constituição liberal que diz que todo somos equânimes. Temos leis que explicitamente criminalizam o racismo. Tudo parece resolvido até que decidimos sair do modo automático e ver como o mundo é de fato mais complicado. Não há como acabar com o racismo com uma simples ordem: a partir de agora declaro o racismo extinto.
Os dados e as histórias estão aí para provar o contrário, alguns fatos que aconteceram este ano:
- Tivemos um Oscar sem indicações de negros, mais uma vez.
- Recentemente o George Floyd foi enforcado como um animal, por um policial branco;
- Duas crianças foram xingadas no metrô de Salvador, por terem o cabelo crespo de negras (ressalto que salvador tem a população majoritariamente negra).
Não vou me alongar nesta lista. Mas é só pra mostrar que o racismo ainda faz parte de nosso dia-a-dia porque ainda não nos esforçamos o bastante para dissipar, como população, a dualidade tão cruel que a natureza nos obriga a conviver do ponto de vista individual. Precisamos construir um Estado que aceite nossa natureza limitada, e por isso nos lembre sempre que o mundo é mais complicado do que podemos perceber individualmente. Um Estado ativo, que tenha políticas de educação e afirmação de identidade, que não nos deixe esquecer que o todo é maior que as partes.
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